Por Rosa Maria Madruga Marques – Filósofa Clínica

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor esquisita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso.

 

                                                                              (Mario Quintana)

 

Ler o poema “O Mapa”, de Mario Quintana, remete-me para dentro de mim mesma. E tento descobrir por que me tocam tão fundo aquelas palavras. Por que fico engasgada, perdida, viajando junto com ele, já que nunca tive grande curiosidade em conhecer aquelas ruas que lhe faziam tanta falta?

Dentro da emoção e de uma saudade aparentemente sem causa, me vem a possível resposta: ali se espelham, de alguma forma, as ruas e atalhos de minha cidade interior. Também lá existem becos escuros e ruas encantadas. E por entre elas sopra um vento que remexe e traz à lembrança sonhos e desejos dos quais nem eu mesma suspeitava.

Há, pelo menos, uma moça bonita perdida no meu passado, que eu desejo conhecer. É aquela que se escondeu (e ainda se esconde) dentro de meu corpo, encerrada em minha alma, a quem nunca tive olhos capazes de ver. Essa moça ainda vive em mim, e eu preciso descobri-la. Conseguirei? Talvez… Certo é que, para dar boas-vindas à anciã que se aproxima, preciso ter presente a moça que fui um dia.

Só agora, já percorrendo o caminho que leva à velhice, percebo de quantos anseios não satisfeitos e de quantas alegrias não realizadas tem sido feita a minha vida. E se então eu soubesse quão rapidamente passa o tempo, com certeza teria percorrido com mais sofreguidão as ruas do meu passado.

Agora lembro rostos, vozes, gostos, cheiros, fachadas que, quando eram presentes, não possuíam significado especial. Talvez seja a saudade que dá a eles a textura de faz-de-conta e põe na boca, novamente, um gosto de infância. E os amores não vividos? E os perigos não experimentados? Ah! Não fosse o medo, quão mais gloriosos poderiam ter sido os meus caminhos!

E o futuro? Como compensar no que está por vir aquilo que, por medo ou preguiça, não vivi? Agora, é tentar. Tocar, cheirar, beber, ouvir. Saborear todos os presentes (futuros presentes) que aparecerem no restante da jornada. Nada perder, nada ignorar, nada desprezar. Sugar da vida todos os sabores e sair dela satisfeita na entrega total e no gozo de viver sem grilhões.

Quando imagino concluídas as minhas considerações em torno do tema, ocorre como que um salto de uma a outra dimensão. Vislumbro nuanças do mundo do poeta. A que ruas, reais ou imaginárias, ele terá se transportado ao escrever o poema? Talvez a verdadeira anatomia a que se refere não seja a de Porto Alegre, mas aquela do corpo distante da cidade da sua infância. Ou, quem sabe, esse mapa é também aquele do poeta menino, ressurgindo nas ruas da cidade que ele amou e que o abraçou, como a mãe a um filho querido.

Como saber? Dele conheço apenas o nome, parte da obra e alguns fatos que são contados por aí. O temperamento difícil, o gosto pela solidão, são características que chegam ao meu conhecimento de forma vaga, pela voz do povo.

Neste momento, penaliza-me a falta de Mario Quintana. Teria sido bom conversar com o poeta, vislumbrar um pouco da sua história. E, quem sabe, partilhar, ainda que por alguns instantes, das vivências de um ser humano tão rico em sensibilidade.

Conversar teria sido uma forma de viajar (e eu amo as viagens!) ao País de Quintanares, e lá saborear um pouco de tão fértil fonte de humanidade e poesia.

Fazem já muitos anos que esse poema me persegue, mas só há algum tempo consegui perceber o quanto ele diz das minhas coisas. O tempo e a experiência lançaram luz em alguns pontos obscuros da minha emoção.

Por que da minha emoção, e não apenas da minha história? Porque é na primeira que se alicerça a força do meu passado e a expectativa do meu futuro. É também nela que eu encontro a razão e a pertinência do presente.

Certamente algumas pessoas verão em “O Mapa” apenas a relação de amor do poeta com a cidade. Para mim, porém, está desenhado nele o território longínquo do meu passado.

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