Por Lúcio Packter – Sistematizador da Filosofia Clínica no Brasil

    O tema é fruto de algumas reflexões a partir da transcrição de um wokshop realizado sobre o acidente aéreo ocorrido com a delegação do clube de futebol Chapecoense da cidade de Chapecó-SC, juntamente com jornalistas e tripulantes na madrugada do dia vinte e nove de novembro de dois mil de dezesseis, na Colômbia.

   Inicialmente é muito importante pesquisarmos as bases categoriais. Em casos e situações desta natureza, não há tempo hábil de trabalharmos a historicidade das pessoas que chegam. Não há um tempo hábil de tirarmos a historicidade da pessoa. Então, recuamos um pouco e trabalhamos com as bases categoriais. Ou seja, quais são os preceitos de época, de cultura e de contexto daqueles que estão envolvidos. Como é a estrutura de pensamento da região. No caso específico de Chapecó-SC, com mais de 200 mil pessoas é notório que isso é feito por aproximação e existem muitos elementos aqui que pedem reparos. Então, com base nisso é que é dado o acolhimento.

E na medida em que ocorre um fato como esse, o terapeuta, o psicoterapeuta, o filósofo clínico, o psiquiatra ou psicólogo efetiva os ajustes de pessoa a pessoa, de família a família, conforme os muitos encontros e desencontros. Existem questões muito importantes aqui. Uma questão inicial é sabermos dimensionar como a sociedade local entende, compreende, processa e desenvolve um assunto como esse. Qual é o âmbito que ela coloca: na área da tragédia ou na área da indiferença, como em muitas vezes vimos na história da humanidade? Ela coloca numa área específica da dor?

No caso de Chapecó-SC ficou bastante evidente. Foi colocado numa área da tragédia, na área de uma grande dor, de uma imensa perda. Reduzir o que houve simplesmente a uma concepção de um time de futebol que ia bem num campeonato futebolístico é tirar talvez a maior parte do que aconteceu, pois foi muito mais do que isso. Não era apenas um time de futebol que havia se acidentado. E se fosse apenas isso já seria muito!

A sociedade local rapidamente mostrou como dimensionar o que aconteceu. Agora temos que considerar como cada indivíduo participa desses elementos da sociedade em base categorial. Qual é a interseção que existe? Alguns indivíduos, por exemplo, por uma orientação religiosa ou espiritualista, entendem isso de uma forma muito diferente: eles não conseguem conectar um evento como esse sobre o crivo da tragédia. Outros indivíduos não apenas conectam com o que houve, mas eles se tornam muitas vezes um amplificador disso, se sobrecarregando e, às vezes, entrando até em desespero. Alguns quando fazem interseção com a sociedade local, com aquilo que está acontecendo, eles mudam profunda e essencialmente o fenômeno durante a maior gravidade: eles conseguem lidar com isso.

Então, após o primeiro fator que é considerar as bases categoriais e ver como foi isso identificado na sociedade local, partimos para o estudo de como a pessoa que está diante de nós lida com esse fenômeno que está aí diante dela. E aqui vamos ter de tudo: vamos ter choque ou trauma, ou desespero, ou até reações que vão parecer como se a pessoa não estivesse entendendo o que se passa, até pessoas que agem de uma maneira completamente indiferente, dando uma outra conotação. Enfim, aí nós vamos ter praticamente de tudo.

Bem, aqui precisamos considerar alguns elementos que estão diante desse contexto todo inicial: com que estamos tratando? Qual é a natureza do que estamos tratando? Eu sei que ao colocar assim, uma resposta é óbvia: estamos lidando com uma grande perda; é disso que estamos tratando, mas a historicidade da humanidade não mostra bem essas coisas. Há muitos elementos que são indexados de outras maneiras. Grandes batalhas foram entendidas de formas diferentes, não apenas no momento que aconteceram, mas com o tempo; então é importante que saibamos que estamos lidando com qual natureza de evento. Como ele se insere aí? Para saber como também devemos nos aproximar desses elementos e o que fazer a respeito deles. Vamos ver algumas exemplificações sobre isso.

Se estamos lidando com elementos de choques, ou seja, de ponto de vista da sociedade de milhares de indivíduos, houve um choque muito grande; maior do que isso que nós nomeamos como perda, talvez a perda propriamente não tem aparecido. Talvez o que tem aparecido no momento foi o impacto, a perplexidade. As lágrimas, a dor e nesse caso, talvez, a perda apareça daqui alguns dias ou dentro de algumas semanas. Eu não estou dizendo que é assim, estou dizendo que isto é uma possibilidade que precisamos pesquisar. Somos pesquisadores da alma humana. Então vamos pesquisar, vamos ver se foi assim.

Um dos motivos de fazermos a pesquisa se a perda, de fato, aparecerá daqui algumas semanas ou, às vezes, meses é ver como a população e como os indivíduos dentro dessa população lidam com esses elementos de perda. Quando estudarmos, podemos ver que a população local costuma lidar com perda, por exemplo, enfrentando o problema; outros lidam com perdas recuando e acusando uma grave tristeza, um recuo existencial, uma baixa em todos os princípios vitais, como uma maneira de lidar com isso. Achar que a perda se dá no momento em que algo trágico ocorre, muitas vezes, é negligenciar a pesquisa. Para alguns, a perda não ocorre no momento da tragédia, ocorre depois. Para outros, isso nem vai ocorrer.

Como filósofos clínicos costumamos observar em fatores traumáticos, ou em fatores insidiosos, ou em fatores contundentes como esses quais partes da estrutura de pensamento de uma pessoa, ou de uma sociedade, esses fortes fatores costumam tocar. Por exemplo: em algumas pessoas, ou em algumas sociedades, um evento como esse incide diretamente sobre a parte da afetividade – que é um tópico referente às emoções, ou ao tópico significado ou ao tópico prejuízos. Nós precisamos redimensionar, por aproximação; e nem sempre isso é fácil, durante o momento em que ocorre, pois provavelmente houve um forte abalo existencial.

Às vezes uma tragédia como essa propicia o sentimento, a emoção, a solidariedade, as buscas e, então, consegue ultrapassar feridas, mágoas. Costuma, às vezes, propiciar às pessoas outro desenvolvimento, rapidamente, em fatores que levariam, às vezes, muito tempo, muitos anos se não tivesse existido uma tragédia. E alguns, nesses casos, se veem no estranho paradoxo, no qual foi a tragédia que permitiu a eles conhecerem a humanidade, conhecerem o amor, conhecerem o desenvolvimento, crescerem e se desenvolverem. Imagine como é viver um paradoxo como esse.

Para muitos, fatos como esse são tão dilemáticos e tão difíceis que eles se sentem culpados, eles se sentem incomodados porque, de certa maneira, alguns atribuem o crescimento e o humanismo que adquiriram a uma tragédia. E se sentem mal com isso. Mas essa relação que alguns fazem dessa forma não é necessária, ela é contingente, pois para muitos não é assim. Fatores como esse que aconteceu, impactam diretamente nas áreas de desenvolvimento da estrutura de pensamento de uma sociedade e de uma pessoa, ocasionando, às vezes, desde uma parada existencial, por muito tempo, até um recuo a bases muito anteriores.

Alguns desistem; alguns acham que a vida não vale a pena; alguns ficam profundamente magoados contra a existência e contra a crença que eles têm; alguns acham que foram furtados, existencialmente, roubados, assaltados e que isso não poderia ter acontecido. Ou seja, saber onde vai impactar na malha intelectiva nos fornece esses adicionamentos. Claro que simplifiquei com dois ou três itens, mas são muitos mais, isso vai há milhares de exemplificações. Temos que ver em cada caso como isso ocorre.

Considerando aquelas pessoas que tomaram, de fato, o que aconteceu como uma perda, uma dor, elas adotaram um modo social de encarar um evento como esse como uma tragédia. Então, o que fazer com estas pessoas? Qual o caminho? Anestesiar essa dor? Mas se fizermos isso será que algumas pessoas depois não dirão que ao invés de ajudar, acabamos atrapalhando e dificultando as coisas? Algumas pessoas quando perdem pessoas que amam muito e são sedadas com medicamentos algum tempo depois se sentem roubadas, e dizem: “que direito você tinha de me privar do meu luto, das minhas lágrimas, da minha dor? Como você pode fazer isso? Isso é uma parte importante que eu tinha para lidar com o que aconteceu”.

Alguns precisam do luto, precisam vivenciar as lágrimas, a revolta. As várias etapas para cada um serão diferentes, mas alguns precisam disso. Não podemos privar algumas pessoas desse direito que elas têm. E outras nos pedirão, profunda e essencialmente, que façamos esse furto existencial. Seja qual for o caminho que será adotado precisamos, ainda, dimensionar se esse pedido, abrange a quais partes da existência da pessoa. Às vezes, uma pessoa no momento de desespero, de pânico de dor e de medo pode pedir e fazer coisas que logo em seguida, assim que a paz for restaurada, ela se arrependerá muitíssimo. E nós precisamos estar atentos a isso. É nossa função, é nosso trabalho lidar com isso!

Existem vários caminhos e horizontes que parecem seguir abertos. Alguns novos horizontes se anunciam. Observe como cada pessoa lida com isso. Uns falam em reconstrução, outros falam em erguer time, outros tiram lições para suas vidas, outros levam esse ensinamento para comunidade. Observe os desdobramentos, observe os caminhos que são trilhados, a partir de outros fenômenos como esse.

Tragédias, assim, quando ocorrem ocasionam golpes muito duros na existência; são aprendizagens difíceis. É mais um capítulo da longa e linda jornada e, às vezes, trágica jornada que é a vida.

 

Leia a versão completa desse tema no
Fascículo de Filosofia Clínica 08
Perdas e Luto

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